Lembro-me de kotas que se escondiam em tectos falsos ou em tamborões com água para escapar das rusgas dos militares de ambos ao lados do confronto.
Lembro-me do sofrimento das mães obrigadas a mentir que não tinham filhos para não os ver partir inda imaturos e, se calhar, para nunca mais voltarem.
Recordo-me da preocupação dos pais, impotentes, inconformados, mas sem armas para travar o curso dos acontecimentos. Vem-me à memória a tristeza que se apossava das famílias quando o filho varão atingisse os 18 anos, hora de partir (in)voluntariamente ou forçadamente para a "vida kwemba". E havia aquelas famílias em que dois ou três rapazes estavam "abrangidos"...
Em Março de 2002, depois da morte do Jaguar Negro, estive no Lwena a reportar os momentos políticos e sociais que antecederam ao aperto de mãos, na sede da Assembleia Nacional, entre Armando da Cruz Neto e Geraldo Abreu Mwengo Ukwacitembu "Kamorteiro".
Na infância e adolescência, dormitei nas matas sob chuva intensa e frio. Fiz caminho entre capim alto e espinhos. Calcorreei os rios Kazondo, Riaha e Sangisa (Libolo), andei a pé dezenas de quilómetros em asfalto que ensaiava a sua quentura em meus pés frágeis e descalços. Enfrentei atalhos espinhosos, fugindo sempre dos homens do "Barbas". Já percorri, em 1989, cerca de cem quilómetros seguidos em três jornadas: Kalulu-Munenga-Pedra Escrita-Mbangu de Kuteka.
Em 1984, criança ainda, depois de largas noites nas matas, fora da aldeia e do arimbo, fugindo da guerrilha, refugiámo-nos na sede comunal da Munenga. Um veado inteiro apanhava fumaça para não se estragar a carne. Só a “jinginga” foi servida ao jantar. Nessa mesma noite de Fevereiro, os homens da farda apertadíssima atacaram a sede comunal que era guarnecida por tropas das Fapla e da Swapo. Lembro-me ainda do curativo que um enfermeiro da Swapo fez, na tarde da chegada ao vilarejo, à minha ferida na minha perna que já deitava cheiro. Em madrugada repleta de violência inédita, uma bala levou fios de cabelo do meu primo Naldo, hoje comissário da polícia nacional. O francês que o meu primo já falava salvou-nos do rapto gratuito. Muitos parentes e amigos da família morreram naquela trágica madrugada. Andrajosos, exauridos em tudo, partimos a pé para Samba Karinje, em mais um recuo.
Aqui chegados, 13 anos depois do calar das armas, reconciliemos as almas. Ainda falta pão em muitos lares. Água e energia eléctrica ainda são um luxo para muitos. Escasseiam ainda os empregos, a saúde e formação de qualidade. Faltam estradas e o trânsito em cidades como Luanda e Lubango é insuportável em horas de ponta. Sei disso. Mas peçamo-los com discernimento, sem entornar o caldo da paz. Peço a todos angolanos a máxima atenção: o caldo fervente alimenta-se com lenhas. A panela está sobre "maswika". Entre "maswika" se colocam as lenhas. Derrubando uma das pedras que suportam a panela, esta se desequilibra e perde-se o caldo. Onde brigam elefantes é o capim que sofre.